Manifesto para a Preservação Digital

1. É reconhecida a relevância crescente que os meios e técnicas digitais de codificação, armazenamento e transporte de informação têm assumido na sociedade actual, com enormes vantagens em termos de redução de custos e aumento de eficácia dos processos de criação, troca e difusão dessa mesma informação. Começam no entanto a ser igualmente reconhecidos os perigos associados ao carácter efémero dessa informação, dadas as dificuldades da sua preservação. O problema poderá ter a prazo um impacto muito importante ao nível da memória social colectiva ou privada, com extensão aos níveis legais, comerciais ou simplesmente organizacionais.

2. Em concreto, se em ambiente tradicional a preservação dos recursos de informação é focada sobretudo no suporte (em que o conteúdo, estrutura e de certa forma também o contexto estão unidos), em ambiente electrónico tal não basta. Neste contexto há que considerar, para além da preservação física dos meios (disquetes, fitas e discos magnéticos, discos ópticos, etc.), também as necessidades de migração dos formatos de codificação entretanto obsoletos, ou ainda a capacidade de reinterpretação no futuro dos formatos armazenados (como por exemplo formatos de texto, imagens paradas ou em movimento, bases de dados, recursos multimédia em geral, etc.). O fracasso na preservação destes recursos acarretará à perca irreversível do registo, da prova, do testemunho, da memória.

3. No caso das bibliotecas, por exemplo, o problema mostra-se relevante especialmente em duas perspectivas principais: ao nível da informação impressa tradicional que entretanto esteja sendo transcrita para formatos digitais (processo geralmente designado de "digitalização", uma vontade e uma prática cada vez mais comum especialmente entre bibliotecas patrimoniais, como forma de trazerem para o conhecimento e acesso público os seus espólios tradicionais); e ainda ao nível dos novos géneros de recursos nascidos já em meios digitais, como por exemplo jornais, revistas e sítios de referência publicados na Internet, livros digitais ("eBooks), etc. A preservação destas classes de recursos será premente por exemplo no caso das bibliotecas universitárias e de referência em geral, actualmente postas perante a possibilidade de licenciamento de acesso a colecções de livros digitais e revistas científicas, as quais permanecem na realidade na posse dos editores internacionais por impossibilidade técnica dessas bibliotecas em alojar localmente e preservar esses recursos. De uma forma mais geral, o problema poderá ser ainda relevante para a Biblioteca Nacional, que enquanto biblioteca de depósito deverá talvez assumir perante a sociedade responsabilidades especiais neste campo.

4. No caso dos arquivos administrativos (correntes e históricos, públicos ou privados), à dimensão informacional desses recursos e sistemas junta-se uma dimensão probatória, que coloca a questão da "autenticidade" no centro das preocupações de preservação digital. Esta exigência específica do universo arquivístico aconselha a integrar o problema da preservação digital nos quadros de implementação de modelos de processos e relações formais entre actores nos contextos do comércio electrónico e especialmente do governo electrónico ("e-government"). Tal coloca o problema ao nível das prioridades nacionais, requerendo o desenvolvimento de regulamentação sobre o valor probatório dos documentos electrónicos, e ainda a definição de parâmetros para a certificação de qualidade dos processos e dos serviços de arquivo. O envolvimento, por exemplo, do Instituo dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo nesta problemática é premente porquanto, além de ser depositário de património arquivístico, tem especiais responsabilidades de coordenação nacional dos arquivos

5. No caso dos arquivos audiovisuais, além das estratégias necessárias à preservação dos novos conteúdos, em grande parte já criados em meios e formatos digitais, é ainda de realçar o potencial que a digitalização pode representar para os meios analógicos tradicionais. Um documento audiovisual necessita sempre de um suporte (por exemplo, filme e cassetes), e mesmo nas condições de arquivo óptimas, (respeitando níveis de temperatura, humidade, e exposição à luz) estes suportes estão sempre sujeitos a um estado natural de degradação contínua com o tempo, a qual pode chegar a um ponto que torne o restauro impraticável. A preservação deste tipo de recursos é premente por exemplo para os vários arquivos audiovisuais, sejam de televisão, cinema, ou multimédia em geral. Estes recursos podem ser de grande complexidade tecnológica, sendo já comuns a sua publicação em sítios técnicos, culturais ou de diversão na Internet, difusão por redes de televisão interactiva, ou exposição em eventos técnicos e artísticos.


6. Porque a preservação destes sistemas e recursos digitais ou digitalizados nunca será obra do acaso, exigindo antes prevenção e avultados investimentos, manifestam os subscritores deste documento a sua preocupação pelo défice de atenção que este problema tem merecido a nível nacional, solicitando por isso a todos os profissionais, organismos públicos ou privados, e especialmente às entidades e decisores estratégicos e políticos com responsabilidades e capacidade efectiva ou potencial de intervenção neste problema, a urgência do reconhecimento do mesmo e da necessidade de investimento em estratégias adequadas para a sua análise, prevenção e solução. Os subscritores manifestam especialmente a necessidade de abordagem explícita do problema no contexto das grandes orientações estratégias públicas, e ainda de influência das estratégias privadas, especialmente no que concerne a:

· Definição de papéis: É urgente a definição de políticas, atribuição de mandatos e apetrechamento operacional adequado, ao nível tecnológico e humano, das entidades de depósito e órgãos de coordenação nacional para uma intervenção consequente nesta área. Tal deverá considerar a redefinição dos papéis e responsabilidades tradicionais ou se necessário a identificação de novos actores, missões, ou modelos de cooperação intersectorial;

· Definição da acção: É urgente a definição de políticas concertadas e de incentivos para a promoção de cenários de cooperação e de vantagem mutual tanto para os criadores e produtores de recursos digitais (incluindo desde a administrações central, regional e local, até aos actores privados, comerciais, culturais, artísticos, etc.) como para as entidades de depósito e órgãos de coordenação nacional. Tal deverá permitir as adequadas análises de requisitos, planeamento, concretização e avaliação dos modelos, normas e soluções tecnológicas adequadas para a preservação desses recursos. Tudo isto deverá ser equacionado ainda no contexto nacional e internacional, visando a partilha de experiências e a optimização de modelos de custo-benefício.

· Alerta, responsabilização e promoção do conhecimento: É urgente a inclusão desta temática e preocupações como requisito obrigatório no âmbito dos programas nacionais de apoio à criação de recursos digitais ou digitalizados, de modernização, inovação administrativa ou formação, e ainda como tópico prioritário nos programas de apoio à investigação e desenvolvimento tecnológico.

Os subscritores:
· José Luís Borbinha (Professor Auxiliar do Departamento de Informática do Instituto Superior Técnico; Investigador Convidado do INESC; Director dos Serviços de Inovação e Desenvolvimento da Biblioteca Nacional);
· Cecília Henriques (Arquivista, Coordenadora do Gabinete de Estudos e Planeamento Técnico do Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo; membro da Direcção da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas);
· João Sequeira (Licenciado em Informática; Assistente Universitário; Chefe de Gabinete de Sistemas de Informação da RTP);
· Bruno Lopes (Licenciado em engenharia Electrotécnica e de Telecomunicações, Técnico Superior do Gabinete de Sistemas de Informação da RTP).

Os subscritores solicitam a todos aqueles que se sintam motivados por este manifesto a sua contribuição para a divulgação alargada do mesmo, assim como da tomada de posição pessoais, colectivas ou institucionais que se mostrem possíveis e que, no mesmo espírito, possam conduzir a resultados consequentes.